Leave the world behind

[Depois das Zebras]

Texto e Encenação: Pedro Gil, em cocriação com Interpretação: Carla Gomes, Cirila Bossuet, Cláudio de Castro, João Estima, Pedro Gil e Raquel Castro. Figurinos: Catarina Graça. Costura: Rosáio Balbi. Apoio à Construção das Máscaras: Rute Reis. Luz: Daniel Worm. Cenografia: Joana Subtil. Execução de Arte: Rui Geifão. Som e Música: Pedro Costa. Apoio à Encenação: Diogo Andrade. Apoio à Dramaturgia: Raquel Castro. Produção Executiva: Raquel Rolim. Gestão e Administração: Mariana Venes. Comunicação: João Leitão. Residência Artística (Estúdio de Criação): Ana Arinto, Diogo Andrade, Katrin Kasa, Mário Coelho, Paulo Pinto, Sara Inês Gigante e Tonan Quito. Coprodução: Razões Pessoais, Teatro Nacional São João, Teatro Municipal de Ourém e São Luiz Teatro Municipal. Apoios: Razões Pessoais, Teatro Nacional São João, Teatro Municipal de Ourém e São Luiz Teatro Municipal /// Razões Pessoais é uma companhia de teatro residente no espaço da Companhia Olga Roriz em Lisboa e apoiada pela República Portuguesa/ Direcção Geral das Artes.

25 de Fevereiro 2024, Sala Luis Miguel Cintra, Teatro São Luiz

Na sala principal do Teatro São Luiz, Razões Pessoais estreia o seu mais recente espectáculo com encenação e texto de Pedro Gil, em cocriação com o elenco composto por Carla Gomes, Cirila Bossuet, Cláudio de Castro, João Estima, Pedro Gil e Raquel Castro.

Afirmando a assinatura de criatividade, singularidade e imaginação da companhia, Depois das Zebras segue o tipo de narrativas insólitas e únicas, de conteúdo aparentemente banal, a que já habituou o público com a sua escrita original.

A história contada parece surgir de um jogo entre crianças, em que os locais, referências e imaginário são mais ou menos aleatórios, para produzir uma mensagem cénica apurada e madura, sem se tornar necessariamente pedagógica. Sempre através de um certo aspecto lúdico de que depende o típico jogo teatral de Pedro Gil, a dramatização consciente e consistente leva a reunião de acasos, e eventos mais particulares, a uma pequena odisseia sobre a inversão das estruturas da sociedade e dos modelos de poder.

A acção passa-se num resort no Quénia, onde acontece um assalto que torna dois grupos de hóspedes e turistas reféns de vilões mascarados de Zebras. Durante a ocupação da manada de equinos de duas pernas, as funções e comportamentos expectáveis de staff e de turistas são suspensas e baralhadas: encontrando-se todos na situação de vítimas, o primeiro grupo, em contacto directo com o grupo de rufias, cria união e ausência de status entre si: entreajudam-se, tornam-se confidentes e parceiros nesta situação de perigo, numa reorganização horizontal de funções e obrigações dentro do conjunto, cumprindo apenas as ordens das Zebras ameaçadoras. Para o grupo que foi retido na cave do hotel, as duas dimensões sociais (a de trabalhadores e a de visitantes), parece permanecer intocável, mantendo as diferenças entre servidores e servidos. Depois de uma rebelião organizada pelos capturados, ajudados pela polícia, a vida no resort volta à normalidade, sem que, no entanto, essa “normalidade” passe inócua pela experiência traumática do assalto e das novas relações e realidades estabelecidas.

A espantosa aurora e crepúsculo africanos, reproduzidos pelo trabalho de Daniel Worm, ilumina a paisagem composta pela silhueta de uma acácia guarda-chuva (símbolo nacional do Quénia), juntamente com a presença de girafas e flamingos em contraluz, que sugerem a passagem dos animas pelo local da acção, em aparente normalidade. O cenário manifestamente incrível do trabalho de Joana Subtil revela que nada se alterou para o mundo, enquanto o mundo todo ficou diferente dentro das paredes do hotel. A aura quente de África serve, a partir de então, a luta entre o partido dos que querem que “tudo volte ao que era antes” e os que querem que “tudo permaneça tal qual está”.

É a nova convivência do primeiro grupo, organizado a partir de amizades e cumplicidades improváveis, que insiste num “novo normal”. Para este grupo “todos fazem tudo”, desde as funções próprias e necessárias à qualidade e bem-estar do hotel (fazer camas, servir refeições e bebidas, etc.), até às “funções de lazer”, que compreendem conversas amenas entre os antes funcionários e os turistas à beira da piscina, numa reprodução do ambiente social que viveram sob o assalto. A este, opõe-se o segundo grupo, para quem o episódio traumático só pode ser superado se todos voltarem aos seus papéis de antes dessa realidade cápsula se ter manifestado.

Entre discussões entre o novo e o velho modo de funcionamento do hotel, chega uma prepotente família portuguesa, cujas exigências e direitos se vêem baralhados pelo clima eleitoral explanado pelas personagens em tempo de experimentação e propaganda dos programas de existência de cada grupo.

A encenação evidencia sobretudo o tom autoritário e inconsequente que turistas, habituados ao antigo sistema de “quem manda” e “quem cumpre” experimentam, tornando visível as relações de poder e privilégios entre empregados e visitantes. No momento cénico da visita da família portuguesa aos leões, torna-se manifesto o pretensiosismo, falta de empatia e tom imperativo que os “poderosos” empregam sobre os seus subordinados.

Importa referenciar o trabalho dos actores que, com a ajuda do trabalho dos figurinos de Catarina Graça, interpretam vários papéis, entre os funcionários do hotel e os turistas que ali residem temporariamente. A par de uma linguagem original (grammelot*, uma língua inventada) que inspira as várias nacionalidades da acção, e juntamente com o vestir e despir das fardas de hotel (compostas por um adereço de figurino colorido que os actores colocam ou retiram), o elenco move-se entre os vários países, estratos e status sociais, interpretando a diversidade de personagens em conflito.

O trabalho dos intérpretes é rico em jogos de linguagem e na criação de imaginários a partir da utilização de cadeiras e mesas que, manipuladas por estes, se transformam em piscina, carro de safari, gabinete de massagens… Sempre mantendo a prosperidade do jogo cénico, o elenco é hábil no seu fazer teatral, num exercício despretensioso que termina com o imperativo da normalidade como sempre foi: estratificada, vertical, dividida e classificada. Destacam-se a leveza, comicidade e agilidade do discurso sem que, no entanto, se torne vazio ou banal. As tensões maiores da proposta cénica recaem na reflexão do espectador.

Destas férias no Quénia percebe-se que o destino de eleição é absolutamente aleatório. A narrativa passa-se num hotel em África, mas poderia ser em qualquer parte do mundo, em que uma circunstância exterior evidencie o perigo, cujo único o caminho para a sobrevivência resultará da união e da fraternidade entre os ameaçados. Em essência, é um estudo psicológico, utilizando as personagens como instrumentos para dissecar as formas multifacetadas como o medo pode moldar e definir as relações humanas e a sua existência política.

Tem como calcanhar de Aquiles alguns problemas de ritmo, por via de cenas simétricas que se estendem, a par de momentos narrativos que recorrem à credibilidade, mas que diluem a sensação de urgência da escolha da norma para a realidade. Deixar o Mundo para trás, parece ser a resolução cliché dos nossos dias, uma tendência que a ficção tem explorado desde que um vírus à escala mundial colocou em causa os parâmetros da normalidade, revelando que esta que pode ser reformulada de um dia para o outro, sempre que surjam Zebras pelo caminho.

*Segundo a explicação cedida por Pedro Gil na folha de sala, “grammelot representa uma língua criando outra língua, com mais ou menos lógica intrínseca, com sonoridade semelhante e que pode, ou não, querer dizer coisas. É uma técnica muito antiga, diz-se que foi inventada para as companhias poderem fazer itinerância por terras estrangeiras onde nunca se conseguiam fazer entender através da fala e também para poderem dizer coisas ofensivas sem que pudessem realmente ser acusados de ofensa”.

Este texto está também publicado em http://www.coffepaste.com

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